Texto retirado de: http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-03942008000200014&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
A mãe que abandona
A retórica da maternidade encontra-se intocada por tanto tempo que se exibe entrelaçada no tecido da consciência social. Ao destacar a mãe que abandona seu filho, vê-se necessário retratar a maternidade, no que tange a sua concepção histórica e social propriamente dita, para um global entendimento da situação do abandono. Assim, em primeira análise concebem-se as falhas naquilo que é apresentado como verdade cristalina à maternagem e, consecutivamente, aos padrões formados por essas falhas e, por fim, tornam-se evidentes os mitos criados sobre a maternidade.
Muitos biólogos comportamentais, segundo Chodorow (1990) e Hrdy (2001), partiram do princípio de que a mulher normal é sempre uma mãe. Tal premissa embasou-se na fisiologia feminina que possibilita à mulher procriar e, portanto, quem pode melhor maternar. Deste modo, qualquer relutância ou falha em cuidar da prole, qualquer desvio da energia da mãe para outras atividades era visto como patológico.
É sabido que o mito da “boa mãe” sempre foi eficaz aos costumes familiares e à distribuição de papéis e este é um dado sociológico raramente questionado e cuja importância é capital para a estruturação de um grupo humano (Forna, 1999; Giberti, Chavanneau de Gore & Taborda, 1997; Motta, 2001).
Fonseca (1995) alegou em detrimento à concepção da fisiologia feminina como indutiva à maternidade, que criar filhos, enquanto primordial ocupação da mulher, ocorre em razão ao acordo tácito entre os cônjuges, onde cabe à mulher gerar os filhos em troca do sustento econômico do marido. No entanto, desde os países contemporâneos – em que as mulheres vivem num estado de liberação ecológica, não mais obrigadas a forragear seu alimento dia após dia para manterem-se vivas e com uma ampla gama de opções reprodutivas – até as outras regiões do mundo onde são menos afortunadas, as mulheres estão constantemente fazendo trocas entre subsistência e reprodução (Hrdy, 2001). Similarmente, Chodorow (1990) mencionou que o “gerar e cuidar das crianças é um dos poucos elementos universais e duradouros da divisão de trabalho por sexo” (p. 17). À mulher era oferecida a escolha: ser a ‘boa mãe’, socialmente esperada, ou então, tornar-se a ‘mãe irresponsável’. Logo, estudos de casos históricos, etnográficos e demográficos apontaram a existência de muitas mães que não cuidaram instintivamente de seus filhos. A escolha dessas mulheres pôs em análise os argumentos essencialistas acerca das mães geneticamente programadas para criar seus filhos. Assim, foi mais fácil aceitar a idéia de que o amor materno é um sentimento socialmente construído.
A relação materno-filial está determinada, desde seu começo, por diversas influências psicológicas do desenvolvimento da própria infância, educação e ambiente cultural da mãe (Balcon, 2002; Bonomi, 2002) e essa é uma das razões do referido não querer maternar.
A mãe que abandona é incluída na categoria ‘deixou seu filho’. Mas é preciso considerar e discernir as diferentes modalidades dessa separação. A decisão de abandonar um filho pode significar, para a mulher, aceitar a impossibilidade de criá-lo, ou sua rejeição a ela ou a frustração de seu amor e desejo maternantes. Entretanto, Becker (1994) reconheceu que há mulheres que não se dispõem à maternidade. A rejeição ao filho é real e manifesta e a manutenção de um vínculo colocaria em risco o desenvolvimento da própria criança.
Assim, observa-se que se o amor materno fosse instintivo todas as mães deveriam ser amorosas. E o que se examina é que em todos os tempos houve mães que amavam, porém, de modo algum, isso foi universal.
As causas do abandono
À ótica social, as causas maternas sempre serão frívolas frente ao ato praticado. As diversas causas do abandono, para Pouchard (1997), necessitam que a realidade se imponha. A autora cita o desamparo e a miséria, acreditando que, geralmente, trata-se de situações dramáticas em que os pais biológicos não têm muitas oportunidades. Em face da realidade da mãe abandonante, a qual se insere, muitas vezes, na parcela populacional submetida à exclusão, à miséria e à violência, essa mãe crê que o abandono é o melhor que ela pode estar fazendo por seus filhos (Freston & Freston, 1994; Weber, 1999).
Mães com histórias de abandono e negligência em suas vidas pregressas constituem o grupo que conduz tal característica às suas experiências maternantes. Trata-se de um círculo vicioso, em que o drama do abandono se reproduz de geração em geração, ou seja, o abandonado abandona (Lipps, 2002; Pouchard, 1997;Watanabe, 2002; Weber, 2006).
As experiências familiares, embora não completamente determinantes, são cruciais à futura maternagem. Assim, as práticas educativas e os estilos parentais recebidos podem tecer a base na qual o abandono se encerra. O estilo parental consiste no conjunto de manifestações dos pais em direção a seus filhos, que caracteriza a natureza da interação entre esses (Reppold, Pacheco, Bardagi & Hutz, 2002). Ele pode ser entendido como o clima emocional que perpassa as atitudes dos pais, cujo efeito é o de alterar a eficácia de exercícios disciplinares específicos, além de influenciar a abertura ou predisposição dos filhos para a socialização (Darling & Steinberg, 1993). Acredita-se que a qualidade da interação familiar a que as mães que abandonaram os seus filhos foram submetidas em suas infâncias foi um dos principais determinantes para o abandono de suas crianças.
Fonseca (1995) ainda observou certas regularidades no comportamento familiar de mães que abandonaram os seus filhos no Brasil. Percebeu uma raridade de casamentos legais; uma relativa instabilidade conjugal e uma proporção alta de mulheres chefes-de-família. Stevens, Nelligan e Kelly (2001) atentaram à imaturidade materna como determinante ao abandono, uma vez que, em sua pesquisa, a maioria das mães abandonantes era adolescente. Mães muito jovens, segundo a literatura internacional, apresentam maior probabilidade de negligenciar seus filhos (Daly & Wilson, 1988; Lee & George, 1999; Overpeck, Brenner, Trumble, Trifiletti & Berendes, 1998). Já Jones (1993), concluiu a partir de seu estudo, que além da pouca idade, da falta de condições econômicas e/ou sociais, um dos fatores que mais influenciaram as mães a abandonar os seus filhos foi o julgamento alheio.
Segundo Freston e Freston (1994), o perfil predominante da mãe que abandona no Brasil é de uma mulher solteira, de mais de 20 anos, de educação primária incompleta, com trabalho incerto, sem fontes maiores de sustento familiar e que engravida de uma relação eventual sem compromisso estável. A maioria dos casos de abandono, de acordo com as pesquisas dos autores acima referenciados, é determinada pela a conjugação do fator econômico (pouca educação formal; salário inconstante) com o fator familiar (enfraquecimento da família extensa pela migração; ausência do companheiro). Quando existe apenas um desses fatores, a incidência de abandono é significativamente menor.
Compreende-se então, que o abandono é um fato social total que só se desvela se compreendido historicamente nas suas vertentes biológicas e psicológicas, culturais e socioeconômicas e não de um modo essencialista, seja qual for a “essência” eleita ou a sua justificação.